Eliete – A vida normal
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«O tempo era tanto mais lento quanto eu vivesse dentro dele e não no futuro ou no passado. Quanto mais presa ao presente, mais lento o tempo passava, mais feliz eu era. A tarde quente lá fora, nós os quatro, o Jorge, as miúdas e eu, quase nus sobre a cama desfeita, os corpos em ninhada sonolenta, pela janela entreaberta a aragem trazia arrepios e farrapos sonoros de coisas aladas, pássaros, vozes, insetos, músicas. Nesse tempo, nessa casa, houve alturas em que o tempo parou, parou mesmo, alturas em que fui imortal, eu cheguei a ser imortal. Ser feliz de forma plena era a maneira de experimentar a imortalidade. Mas sendo a felicidade provisória, era mortal, a imortalidade. […] Todas as famílias, as felizes e as infelizes, tinham segredos, todas as famílias sabiam que a verdade devia ser desprezada como qualquer outra minudência que amesquinhe a vida.»
Estar a meio da vida é como estar a meio de uma ponte suspensa, qualquer brisa a balança. A vida da Eliete vai a meio e, como se isso não bastasse, aproxima-se um vendaval. Mas este é ainda o tempo que será recordado como contendo em si, reconhecível, imparável, a mudança. Apesar de ninguém dar conta disso. Porque tudo parece normal. Deus está ausente ou em trabalhos clandestinos. De tempos a tempos, a Pátria acorda em erupções festivas, mas lá se vai diluindo. E a Família?
Prémio Oceanos 2019