A Inquisição de Goa
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Ao ser publicada em 1687, a Narração de Dellon foi o primeiro livro lúcido e destinado a um vasto público, não somente sobre a Inquisição na Índia portuguesa, mas também sobre os tribunais da fé da época em geral.
A obra transformou-se num best-seller – sendo imediatamente traduzida para o inglês, o alemão e o holandês – e gozou de um sucesso duradouro, tendo um papel capital no combate à intolerância na época das Luzes. Voltaire inspirou-se nela em Cândido; Limborch, Montesquieu, o abade Morellet, Beccaria, Buchanan, entre outros, fizeram eco nos seus escritos deste testemunho com ares de romance de aventura, mas que igualmente se revela um temível panfleto político e religioso.
A Narração é cativante, de estilo agradável e depurado. Nela são minuciosamente descritos os infortúnios de um jovem cirurgião francês que embarcara para as Índias orientais em busca de aventuras, e que foi preso por razões pouco explícitas pela Inquisição de Goa, capital das colônias portuguesas no Oriente. Nos deparamos no livro com as estratégias de Dellon para sobreviver durante os mais de dois anos em que ficou preso nos cárceres do tribunal indiano. Consumido pela solidão e a incerteza que pairava sobre as causas do seu processo, ele chegou a tentar o suicídio. Entremeado a esse relato, Dellon explica o funcionamento da Inquisição, seus tortuosos métodos para condenar os mais diferentes tipos de delitos e perseguir qualquer pessoa que contestasse seu tremendo poder.
Este livro, que se insere no âmbito da literatura de viagens, contém relatos da vida no oriente português e uma descrição de Lisboa, mas também três saborosos capítulos sobre o Brasil, nos quais são contadas as peripécias de várias personagens e as doenças locais, foco permanente de interesse do médico-autor.
A Inquisição de Goa é também um álbum de imagens. Neste livro publicou-se pela primeira vez uma série de gravuras bastante refinadas e rigorosamente exatas sobre a sala de audiência da Inquisição, as diferentes vestimentas penitenciais (os sambenitos), a procissão do auto da fé, a leitura pública das sentenças, as fogueiras. Na verdade, toda a iconografia sobre a Inquisição hoje em dia conhecida, emana originalmente do livro de Dellon, e é em parte reproduzida num importante dossiê iconográfico.
O relato de Dellon é acompanhado de um estudo crítico da própria obra, de suas diferentes edições, do seu impacto na própria época e a influência que teve sobre muitos filósofos iluministas em suas críticas à intolerância e ao poder absoluto da Igreja. Nesse estudo, Charles Amiel e Anne Lima, grandes conhecedores da história da Inquisição, também nos contam o que foi essa instituição e fazem um profundo estudo de todas as ambiguidades da personagem do próprio Dellon.