Abordando as décadas de 1950 a 2000, Mary del Priore encerra sua série sobre a história do Brasil pelo ponto e vista do cidadão comum
Mary del Priore encerra suas Histórias da gente brasileira com República: Testemunhos (1951- 2000), quarto volume da série, abordando a segunda metade do século XX, período em que atravessamos sucessivas tensões políticas e passamos por inúmeras mudanças sociais. A premiada historiadora detalha as transformações que definiram o país em que vivemos hoje. Nas páginas do livro (re)visitamos um Brasil que viu suas cidades se verticalizarem e seguiu por uma odisseia no espaço doméstico. Mary constrói uma narrativa saborosa entremeada com testemunhos de quem viveu nesse tempo – anônimos e famosos, mas sempre sob um olhar muito pessoal –, registrando as mudanças nas ruas, salas de estar, jardins, geladeiras,
estantes, guarda-roupas e lençóis.
Em cerca de cinquenta anos, a vida da gente brasileira mudou mais do que nos quatro séculos anteriores. Para muitos, o período entre a infância e a maturidade foi marcado por mudanças – no trabalho, na comunicação, no lazer, na saúde, na cama – que transformaram o modo de viver e as percepções do mundo. Foi um tempo caracterizado pelo acesso a novos bens de consumo, pela conquista de uma nova liberdade, por novas formas de pensar a intimidade.
Assim, no volume 4 das Histórias da gente brasileira, Mary del Priore convida o leitor a compreender as agruras do presente ao evocar um passado próximo – em especial os anos entre 1964 e 2002. Nesse período se encontram tanto as controversas duas décadas conhecidas como Anos de Chumbo (descritas pela autora a partir da restituição das complexidades do período, sem estabelecer uma narrativa de mocinhos e bandidos) e a
intensa transição para a democracia. É uma fatia da história em que chama atenção o insólito, o extraordinário, que rompe a cadência dos dias: o golpe, para os opositores do regime, ou revolução, segundo seus defensores; o clamor pelas Diretas Já; a morte de Tancredo Neves; e o impeachment de Fernando Collor de Mello, após a primeira eleição direta depois do fim do
regime militar.
Há também embates com as sempre rígidas posições da Igreja: pílulas, não! Sexo é para procriação. As mulheres vão deixar passar essa chance de libertação? Para casar, tem de ser virgem? Geisel aprova a Lei do Divórcio e deixa a bomba do planejamento familiar para seu sucessor, Figueiredo. A “família tradicional” desorganiza-se. O corpo “pecado”, aos poucos, vai se revendo, buscando os ventos da moda, atendendo aos apelos do sol e do ar livre até virar o corpo “prazer”. Mas tudo isso surge pelo ponto de vista das ruas, do cidadão comum, incluindo relatos diversos de pessoas que viveram esse tempo. São testemunhos da gente brasileira que viu, sentiu e se relacionou com o clima político, com os avanços sociais, com as conquistas das Copas do Mundo.
Assim, ao fim do livro e das admiráveis Histórias da gente brasileira, temos a sensação de que entramos no texto e dele participamos; de que estão ali, de fato, as nossas histórias, as histórias desse Brasil tão rico e tão diferente.